Luísa Tovar
Avante, 3 Outubro 2024
A gestão danosa da água em Portugal, caracterizada por uma afectação perdulária da água, favorecendo os negócios privados de muito grande dimensão e descurando todas as funções e utilizações essenciais, têm-se agravado aceleradamente desde a 4ª revisão da Constituição da República, em 1997, que escancarou as portas aos brutais negócios de privatização dos sectores estratégicos – nomeadamente, água e energia.
Imediatamente a seguir que surge, em 1998, a intitulada “Convenção sobre cooperação para a protecção e o aproveitamento sustentável das águas das bacias hidrográficas luso-espanholas”, alias, “Convenção de Albufeira”.
Embrulhado num extenso articulado de lugares-comuns bem sonantes, o âmago dessa Convenção é o “Protocolo Adicional” que estipula volumes anuais a lançar ao rio em determinadas secções dos rios Minho, Douro, Tejo e Guadiana.
Deixo à parte o Minho, que não entra em Portugal e não é afectado.
Quanto às outras bacias hidrográficas, que banham em Portugal regiões com carências de água cíclicas, a Convenção obriga Portugal a lançar ao mar muito mais água do que a lançada por Espanha a Portugal. Ou seja, a Convenção compromete Portugal a não desviar uma gota da água fornecida por Espanha ao abrigo deste convénio e, além disso, a repor as perdas por infiltração e evaporação e acrescentar mais água para lançar ao mar, abdicando da captação de um volume significativo das suas afluências próprias – abdicar da chuva no seu próprio território.
O saldo bruto negativo, para Portugal é enorme:
Da bacia do Douro, deita fora, além dos volumes entrados de Espanha, 1200 milhões de m3, 13% do escoamento médio gerado em Portugal, e na bacia do Tejo, abdica de mais 1300 milhões de m3, 21% do escoamento exclusivamente português – e bastante mais ainda, contando com a compensação da evaporação e infiltrações, que são significativas nessas bacias hidrográficas.
No Guadiana haveria eventualmente um pequeno saldo positivo, de 600 milhões de m3 menos a evaporação, mas só em anos relativamente húmidos e com as albufeiras espanholas bastante abastecidas – o que quase sempre coincide com cheias que Espanha não pode segurar e afluiriam sempre ao Alqueva.
O atentado à soberania portuguesa sobre a água e o território, admitindo direitos de interferência a outro país sobre águas inteiramente geradas em Portugal e troços de rios inteiramente em território nacional, é gravíssimo e, por só, motivo de vigoroso repúdio.
Mas que está por trás desta Convenção, a quem pode interessar a obrigação de deitar tanta água ao mar?
Só para a produção hidroeléctrica, para garantir que faz rodar ao máximo as turbinas das centrais em toda a bacia hidrográfica portuguesa, da fronteira até à foz.
É quase a única utilização da água cujo uso é deitá-la fora. E quer muita, muita água. Com a capacidade instalada à época, calculava-se em 89% da captação global de água em Portugal para todos os fins; sem contar o re-turbinamento, em cascatas de centrais.
Trata-se de impedir captação de água para outros fins em toda a bacia hidrográfica portuguesa, para turbinar toda até à foz.
Esta Convenção, atentatória da soberania portuguesa e lesiva dos interesses nacionais, foi talhada só, e tão só, à medida das poderosas empresas espanholas do sector energético, com quem certamente já teria havido negociações secretas para fruírem das enormes privatizações, foi ratificada pela AR em 1999.
Em 2008 era já evidente que as “boas intenções” formuladas no corpo da Convenção não eram para sair do papel, e que Portugal não controlava as obrigações de Espanha. A espanhola Iberdrola detinha 9,8% da EDP e a concessão para 3 grandes barragens no Tâmega; o seu presidente em Portugal era o ministro que em 1998 tinha em mãos a reestruturação do sector energético português…
Nesse ano foi aprovado o Protocolo de Revisão da Convenção de Albufeira, alterando o artigo 16º para retirar (sub-reptíciamente) a afirmação da manutenção em vigor dos Convénios de 1964 e de 1968, que estabelecem os direitos soberanos de cada um dos Estados na utilização de cada um dos troços fronteiriços dos rios; são tratados de fronteira, que subordinam os concessionários de aproveitamentos das águas às leis e fiscalidade do Estado concedente. Impõem restrições à derivação de águas por Espanha.
A intenção de revogação destes Convénios e a abdicação dos direitos de Portugal é patente pela omissão no texto principal, transferindo para a referência no Protocolo adicional “Os Convénios de 1964 e 1968 são alterados em tudo o que contrarie a aplicação das regras estabelecidas no presente Protocolo”. As alterações ao protocolo adicional não carecem de ratificação parlamentar.
Há poucos dias, foi aprovado em Conselho em Conselho de Ministros um “compromisso com Espanha” cujo conteúdo se desconhece. “Dizem” incidir sobre o Tejo e o fornecimento a Espanha de água do Guadiana e do Alqueva, já mais que sobre-explorada …
Mas o mais grave é sempre o que não dizem …e alerto para os Convénios de fronteira!