O PODER LOCAL NA RESOLUÇÃO DOS PROBLEMAS DAS POPULAÇÕES
Revista Poder Local n.º158
Pedro Ventura (Vereador na Câmara Municipal de Sintra)
O Artigo 9.0 da Constituição da República Portuguesa define as «Tarefas fundamentais do Estado» e na alínea d) do referido artigo, afirma que compete ao Estado «promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais.»
Assim, promover o bem-estar e a qualidade de vida é uma competência do Estado, e por isso não delegável. Estendendo esta competência, podemos entender que compete ao Estado garantir o acesso a um bem essencial à vida: a água.
O acesso à água é um direito natural e constitucional e por isso não pode ser motivo de privação ou impedimento ou outra qualquer opção que transforme a sua acessibilidade dependente da disponibilidade económica ou financeira. Tal seria condicionar o seu acesso e por isso, inaceitável à luz da Constituição da República Portuguesa.
O reconhecimento do acesso à água potável, para além das suas outras ·vertentes, foi reconhecido em 2010 pelas Nações Unidas mas este reconhecimento, culminando um longo processo de lutas sociais, não garante a sua total dada proteção e preservação, dado a pressão constante da ideologia neoliberal para a transformar num negócio.
Apesar deste importante avanço, dez anos depois, e inaugurando uma nova fase de ataque a este bem público, em Dezembro de 2020, a água passa a ser tratada como uma commodity na bolsa de Wall Street ou seja, o seu preço será alvo de especulação bolsista.
Entre a declaração das Nações Unidas e a entrada da água na bolsa de Wall Street, voltou a discussão entre os que defendem que este recurso vital à vida deva ser de todos e controlado por todos, ou os que entendem que se trata de mais uma área de negócio.
Vejamos a situação atual em Portugal. Nos últimos 30 anos, os sucessivos governos do PS, PSD e CDS têm conduzido a sua intervenção com o objetivo da mercantilização da água e resíduos, tentando transformar a água em mercadoria,tentando retirar às populações e ao Poder Local qualquer possibilidade de intervenção democrática na sua gestão. A aprovação dos estatutos da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), que permite impor em todo o País tarifários para o nível já praticado por algumas empresas privadas, obriga as Autarquias que não privatizaram a impor aos munícipes a fatura dos negócios alheios, ultrapassando a autonomia local, estreitando a margem de manobra dos municípios, pressionando-os a fundir e a verticalizar os sistemas e a alienar a distribuição «em baixa».
Para além dos processos de privatização, assistimos também a tentativas mais vastas de desarticulação dos serviços públicos, por via de iniciativas legislativas tendo em vista a concentração de serviços de água, primeiro, retirando aos municípios a competência em «alta», com a criação dos sistemas multimunicipais e a sua entrega ao grupo Águas de Portugal, e mais recentemente, forçando a agregação dos serviços municipais de água «em baixa», através da imposição de garrotes financeiros, ou seja, impedindo os municípios de acederem a fundos comunitários para a modernização das suas infraestruturas.
A derrota da maioria de direita PSD/CDS, nas eleições legislativas de 4 de Outubro de 2015, permitiu abrandar, mas não eliminar, o ritmo de ataque à água pública, tendo contribuído para isso as populações e as associações de defesa da água pública, a que se juntaram os municípios que comprovaram a eficácia da gestão pública da água.
Os municípios demonstraram com casos em concreto, com especial destaque para os primeiros contratos de privatização da água em Portugal, que a privatização ou a concessão de serviços públicos de água, saneamento e resíduos sólidos urbanos conduziu à degradação da qualidade dos serviços, à redução do investimento, agravou as assimetrias no acesso e atacou os direitos dos trabalhadores. Foi o próprio Tribunal de Contas (Relatório n.º 2/2015, Regulação de PPP no sector das Águas – sistemas em Baixa. Auditoria de Seguimento, 2015) que comprova ainda que as concessões foram um desastre financeiro para o erário público e levaram a um aumento dos preços para os utentes, para satisfazer os lucros das empresas concessionárias, sem que tal fosse· cabalmente e tecnicamente justificado.
Foi exatamente pela identificação destes problemas e pela melhoria do acesso e da qualidade dos serviços de água que desde 2000, decorreram a nível mundial mais de 180 processos de remunicipalização de serviços de água, retomando a gestão pública da mesma, e por isso, contrariamente ao que muitos afirmam na comunicação social, a tendência de hoje não é privatizar mas retomar o controlo público da gestão da água.
No último relatório da DECO sobre Tarifas da Água, de Saneamento e de Resíduos em vigor em 2020, esta associação de consumidores, utilizando o método comparativo entre disponibilidade de serviço e preço ao consumidor, evidencia de forma clara como a gestão pública é mais eficiente e acarreta custos inferiores ao utentes. Refere que no universo dos municípios portugueses e nos seus 924 tarifários, tal como em anos anteriores, de norte a sul, as tarifas de abastecimento de água continuam mais elevadas nos municípios que realizaram contratos de concessão com entidades gestoras privadas. Esta evidência, sendo anual, vem confirmar a necessidade de defender a água pública e reverter todas as privatizações que se realizam a partir dos anos 90 do século XX, tal como conseguiu a população de Carrazeda de Ansiães em 2015 e mais recentemente Mafra, em 2016, com a municipalização da gestão da água e criação dos SMAS de Mafra.
O município de Mafra foi o primeiro município a privatizar os serviços de água, em 1994, num processo muito contestado pelas populações e que mereceu, mais tarde, fortes críticas do Tribunal de Contas em relação aos contratos estabelecidos. A recuperação do serviço para a gestão pública deveu-se ao forte endividamento da autarquia e das famílias de Mafra para cumprir com o pagamento do contrato de concessão. A Câmara de Mafra esteve confrontada com a necessidade de aumentar as suas disponibilidades financeiras perante os aumentos galopantes do preço da água, tornando-se esta na principal despesa autárquica. A remunicipalização levou a uma redução financeira de 13% do valor da fatura da água, ao mesmo tempo que libertou verbas de 7 milhões de euros para a modernização das redes de abastecimento. Contudo, pela denúncia do contrato de concessão seis anos antes do seu términos, o município de Mafra pagou 21 milhões à empresa concessionária. Só este aspeto deve fazer refletir os decisores políticos.
O Orçamento de Estado para 2021, por via de diplomas aprovados pela esquerda parlamentar, avançou com propostas para a municipalização de serviços de água, garantindo que os custos desta recuperação para o controlo público não contam para o endividamento municipal. Há cinco anos existiam 34 municípios com o abastecimento de água a privados mas hoje só há menos três (Carrazeda de Ansiães, Mafra e Paredes).
Em contraciclo, Vila Real de Santo António concessionou a gestão da água à empresa Aquapor, assumindo esta a gestão no dia 1 de Janeiro de 2019 durante os próximos 30 anos. A concessão privada garantiu uma renda superior a 9% ao ano, o que significa que arrecadará mais de 38M€ em dividendos. Um desastre para as populações e para o erário público.
Já o caso de Paredes segue a mesma linha de reposição da gestão pública da água, e no caso terminando a concessão privada da empresa Be Water. A aprovação da proposta de municipalização da água na Assembleia Municipal não foi pacífica e levou mesmo à saída da sala de vários eleitos do PSD. A Câmara Municipal de Paredes, invocando os mesmos argumentos de Mafra, afirma que os preços da água são incomportáveis para a população mas reconhece que a empresa é recebedora de 22,5 milhões de euros a título de indemnização.
Ainda em processo de resgate para a gestão pública encontram-se os municípios de Santo Tirso, Gondomar, Arouca, Cartaxo e Alenquer. Os processos estão ainda numa fase inicial mas estes municípios viram-se confrontados com subidas significativas das tarifas, comprometendo brutalmente a capacidade de investimento nas áreas da sua responsabilidade.
No caso de Santo Tirso, a Câmara Municipal admite pagar 12 milhões de euros à lndaqua. A Câmara de Arouca e Cartaxo vieram recentemente (Dezembro de 2020) admitir que a recuperação da gestão da água pode ser o caminho para se libertarem deste enorme fardo financeiro que têm com a concessão privada. Já Gondomar afirma que o processo de resgate é, para já, segundo contas da concessionária, demasiado oneroso porque envolve uma verba de 150 milhões de euros, enquanto Alenquer estimou que o resgate poderá atingir os 60 milhões de euros. Todos estes processos, pelo que se afigura, deverão ter desenvolvimentos na justiça.
De facto, os vários municípios que concessionaram a gestão da água desmascararam o desempenho medíocre das empresas privadas, o subinvestimento, o aumento brutal das tarifas, a dificuldade em monitorizar os operadores privados e a falta de transparência financeira na gestão dos contratos.
Com os exemplos referidos anteriormente, não adianta falar em conceitos distintos como «concessão», «externalização», «PPP» ou outros, porque o que se trata é de privatização ad eternum da gestão da água. Tal é o modelo e vontade das políticas neoliberais. Criado o problema, a seguir vem o resto: uma teia de burocracias, custos e processos judiciais dificulta a ação das autarquias na recuperação de uma área que é manifestamente pública. Todo este imbróglio seria mais facilmente resolvido caso o Governo, através das suas participadas na área, assumisse uma posição claramente de defesa dos interesses públicos.
O setor da água em Portugal é presentemente caraterizado por uma grande diversidade em termos dos modelos de gestão existentes: serviços municipais, serviços municipalizados, empresas municipais, concessões privadas e parcerias público-privadas, entre outros. Em Portugal coexistem entidades gestoras: prósperas e financeiramente desequilibradas; bem e mal dimensionadas; eficientes e ineficientes; com custos muito diferentes para serviços idênticos; com práticas de recuperação integral de custos e cobertura de custos dependente da subsidiação; com preços no consumidor economicamente acessíveis e outras com valores desproporcionados. Só a recuperação da gestão da água para a esfera pública, e numa lógica de colaboração entre a administração central e local, permitirá a defensa da água pública, porque esta traduz-se na defesa da soberania e do interesse nacional.