28 de junho de 2018 | 09h30 | Auditório da Universidade de Évora
Intervenção de Jorge Fael – Sociólogo no STAL, Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local e Regional, em representação da CGTP-IN
PAINEL «Governança de Recursos Hídricos»
Considerações iniciais
Em nome da CGTP-IN, saúdo esta iniciativa, os seus promotores, em particular o Conselho Económico e Social, pelo convite que nos foi formulado para participar.
Este é um tema que nos diz muito, enquanto trabalhadores e cidadãos, mas ele é muito relevante para o conjunto da sociedade e para o País. Tratando-se de um bem público fundamental, como é a água, consideramos que o seu uso, o seu controlo, a sua gestão, têm de ser discutidos na esfera da política, entendida como espaço público, do debate público, da formulação do interesse público.
Nos últimos anos, temos intervindo ativamente neste domínio, e em particular na campanha «Água é de todos», promotora da iniciativa legislativa de cidadãos «Proteção dos direitos individuais e comuns à água» (Proj. Lei n.º368/XII), visando a consagração do direito à água e ao saneamento e impedir a privatização. O Projeto foi rejeitado duas vezes no Parlamento – em 2014, pela maioria PSD e CDS; em 2017, quando esses dois partidos já não constituíam maioria, pelo PSD, CDS e PS, que também votou contra. Votaram sempre favoravelmente o PCP, o BE e o PEV e, em 2017, também o PAN.
O painel que nos foi proposto tem como tema «Governança dos Recursos Hídricos». Consideramos que o conceito de gestão integrada de recursos hídricos seria o mais apropriado. O termo governança, como é sabido, remete para as transformações do papel do Estado e para as políticas de desregulação, liberalização e privatização levadas a cabo com a intenção de descentrar o sistema de governabilidade tradicionalmente fundado sobre a premissa do papel diretor do Estado e de recentrá-lo sobre a base dos princípios do livre mercado. Isto implica, por sua vez, uma reformulação das finalidades e dos valores que orientam o desenvolvimento social, bem como dos sistemas institucionais e de poder envolvidos na prossecução de tais finalidades.
E na nossa perspetiva, o que efetivamente se tem verificado é que os sucessivos governos têm materializado a opção pela água como bem mercantilizável e não como direito, e promovido a crescente neoliberalização/privatização do sector.
Daremos apenas alguns exemplos. A Lei da Água (cujo debate não foi propriamente exemplar em termos de dinamização da participação pública), não consagra explicitamente o direito à água e ao saneamento. Além disso, fomenta o mercado de títulos/direitos da água e a delegação a privados das funções de licenciamento, fiscalização, que cabem ao Estado. A Lei de Titularidade de Recursos Hídricos, possibilita o controlo pelos concessionários privados do domínio público hídrico e permite a desafectação/alienação de bens do domínio público hídrico. Já no sector da água a transformação traduziu-se na desverticalização e desmunicipalização (expropriação de competências autárquicas em «alta» e promoção da privatização em «baixa». Neste âmbito, suprema ironia, registe-se que é a própria AEPSA (Associação de Empresas do sector privado), que refere que o regime legal em vigor, não transfere de forma adequada transferência de riscos para o sector privado (!). É o papel da ERSAR como elemento central na promoção do mimetismo de mercado no sector: eficiência de mercado, preços eficientes, emissão de pareceres vinculativos nas tarifas.
Acresce o sistemático desmantelamento da Administração Pública da Água, patente na destruição dos postos de trabalho e direitos laborais com impactos muito profundos.
Esta tem sido a orientação do quadro legislativo e institucional, fortemente influenciado pelo processo de integração europeia, i.e., a de favorecer e promover o alijamento das responsabilidades e dos deveres do Estado na defesa dos direitos dos cidadãos, na prestação de serviços públicos e na protecção dos recursos hídricos.
Que política de água para o país?
Para a CGTP, o reconhecimento da água como bem público e social e como direito humano fundamental, é incompatível com uma política e uma governação orientada para a desresponsabilização do Estado, para a subordinação do sector ao mercado e para garantir a acumulação de lucros privados. O que se exige é uma política fortemente vinculada com o cumprimento do disposto na Constituição, com o respeito e a fruição universal dos direitos à água (direito humano à água e ao saneamento; direito à água como ambiente; direito à água como meio de produção). Uma política em que o Estado assuma diretamente a responsabilidade inalienável da gestão da água, do domínio público hídrico e dos serviços de águas, garantindo a fruição dos direitos de todos os cidadãos, o estabelecimento de critérios de afectação dos direitos de uso numa perspectiva de desenvolvimento equilibrado, saúde bem-estar e segurança dos cidadãos e nunca de mercantilização. Este é um caminho que pressupõe, entre outras, as seguintes medidas:
– Reconstrução da Administração Pública de Água, permitindo-lhe cumprir cabalmente as suas funções, nomeadamente: planeamento – que tem de ser integrado e contínuo, a vários níveis e escalas; licenciamento e autorização de uso de água e de domínio público hídrico; fiscalização; de conhecimento, investigação e inovação; de proteção das origens de água, dos aquíferos.
– Um planeamento rigoroso, macro e micro, articulado e interligado com a atuação ao nível do planeamento económico, em particular, no desenvolvimento agrícola, industrial, energético, abastecimento de água e saneamento, saúde, ordenamento do território e uso do solo, segurança das populações, ecossistemas, produção, ambiente e lazer, biodiversidade.
– Um planeamento participado de forma ativa e significativa pelas populações, passível de ser monitorizado e fiscalizado.
– Reforço da transparência em particular no que diz respeito às concessões, utilização do domínio público hídrico.
– Impedimento da mercantilização dos recursos hídricos e dos serviços de água e a reversão dos processos existentes (note-se que Mafra decidiu remunicipalizar os serviços de águas).
– A cessação da privatização da autoridade pública sobre os recursos hídricos.
– O reforço e consolidação do carácter público das entidades gestoras, nomeadamente das Sociedades Anónimas de capitais públicos, como é o caso das empresas do grupo Águas de Portugal e outras concessionárias, como a EDIA SA – regista-se positivamente, a aprovação, com os votos favoráveis de PS, PCP, BE e PAN, e os votos contra de PSD e CDS, da quinta alteração à Lei da Água, através da qual estabeleceu o novo princípio da não privatização do sector da água. O novo diploma, a Lei n.º 44/2017 de 19 de junho, estabelece no seu artigo 3.º, alínea b, o «Princípio da exploração e da gestão públicas da água, aplicando-se imperativamente aos sistemas multimunicipais de abastecimento público de água e de saneamento».
– Reforço do investimento público em obras de armazenamento de fins múltiplos geridas pelo Estado com o objetivo de interesse público.
– Valorização do papel dos trabalhadores do sector e criação de boas condições de trabalho, com salários justos. Os direitos laborais devem ser respeitados e a experiência profissional deve ser valorizada, apostando na formação que habilite os trabalhadores para o desempenho de tarefas de complexidade crescente, impostas pela rápida evolução tecnológica, e que seja, simultaneamente, um facto de enriquecimento profissional e humano.
– Medidas de proteção e conservação da água, do uso eficiente da água, da gestão da procura, tendendo para uma situação de permanência das utilizações que caia dentro dos limites de disponibilidade dos recursos existentes.
– Defesa da soberania, do interesse nacional, exigindo nomeadamente uma partilha equitativas das águas nas bacias internacionais – o que é incompatível com convenções detalhadas à medida de interesses estrangeiros nas hidroelétricas portuguesas, patente na obrigatoriedade de escoamento na foz do Douro e na foz do Tejo.
– Uma política de financiamento que promova a realização dos direitos à água, combinando apoios/financiamento público com um sistema de preços orientado para o serviço público e sem fins lucrativos, que tenha como prioridade e entre outras, as seguintes: garantir que a ninguém é negado o acesso à água por razões económicas; o pagamento dos serviços, não a água em si, a manutenção e a melhoria das infraestruturas, a proteção e preservação da água, boas condições de trabalho, programas de educação e consciencialização para o consumo de água sustentável.