EPAL metropolitana: os primeiros passos para a privatização da água e do saneamento pela mão do PS

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Pedro Ventura
Revista Poder Local, n.º 161, Dezembro de 2023 – pg. 210

Desde o 25 de Abril até 1993, os serviços de abastecimento público de água e de saneamento de águas residuais foram sempre uma responsabilidade exclusiva da administração local, ou seja, por entidades democraticamente eleitas, escrutináveis, e orientadas para o serviço público.

A partir de 1993, os diversos governos aprovaram, ao longo dos anos, legislação que foi criando as condições para a privatização do sector, numa lógica de apropriação privada gradual dos serviços de água e saneamento.

Em 2020, o modelo de gestão concessionada representava já 12% e o modelo de delegação atingia 13% das entidades gestoras. A privatização dos serviços de águas tem vindo a revelar-se cada vez mais desastrosa, representando a degradação da qualidade dos serviços e o agravamento das assimetrias no acesso aos serviços, principalmente através do aumento dos preços para satisfação dos lucros das empresas concessionárias.

Os serviços de águas com redes são, por definição, monopólios naturais, e as concessionárias formam um oligopólio. Como era previsível, os resultados das privatizações têm-se demonstrado ruinosos para as autarquias locais e atentatórios do direito universal à água e ao saneamento.

Recentemente, nos últimos meses de 2023, o Governo tomou a iniciativa de pôr em marcha um processo de agregação, desmantelamento e entrega da gestão em baixa de seis municípios (Amadora, Arruda, Loures, Odivelas, Sobral de Monte Agraço e V.F. de Xira) à EPAL e o saneamento à empresa Águas do Tejo Atlântico (AdTA).

A EPAL, a herdeira da CAL – Companhia das Águas de Lisboa (fundada em 1868), é uma sociedade anónima de capitais públicos, detida pelo grupo Águas de Portugal, sendo responsável pelo fornecimento de água a mais de 30% do território nacional, que equivale a um quarto da população portuguesa.
Em 2015, a EPAL passou a ser responsável pela gestão delegada do Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e de Saneamento de Lisboa e Vale do Tejo pelo D. Lei n.º 94/2015 de 29 de Maio, que integrava 86 municípios.

No dia 30 de Junho de 2015 iniciaram-se as actividades de novas empresas, entre as quais a AdLVT – Águas de Lisboa e Vale do Tejo, iniciando-se igualmente a respectiva gestão delegada na EPAL.

No caso da Águas de Lisboa e Vale do Tejo constituiu, pela sua dimensão, a maior operação de agregação alguma vez feita em Portugal, envolvendo directamente oito empresas. À EPAL foi atribuída a gestão delegada do sistema multimunicipal de abastecimento e saneamento de Lisboa e Vale do Tejo.

A publicação do Decreto-Lei 94/2015, com a constituição da AdLVT e a atribuição da gestão delegada daquele sistema à EPAL, obrigou a alterar o organigrama da EPAL para acomodar as novas responsabilidades da gestão dos sistemas da Empresa (alta e baixa) e dos sistemas de Lisboa e Vale do Tejo (abastecimento e saneamento em alta).

Em 2017, o Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e de Saneamento de Lisboa e Vale do Tejo, ao abrigo do Decreto-Lei n.º34/2017, de 24 Março, passou a adoptar a denominação de Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e de Saneamento do Vale do Tejo, na sequência de um processo de cisão.

Assim, em 2007 foi criada a Águas do Tejo Atlântico, S.A., é uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, criada pelo Decreto-Lei 34/2017, de 24 de Março, responsável pela gestão e exploração do sistema multimunicipal de saneamento de águas residuais da Grande Lisboa e Oeste, em regime de exclusivo e por um prazo de 30 anos.

A empresa tem como objectivo a recolha, o tratamento e a rejeição de efluentes domésticos e urbanos, de forma regular, contínua e eficiente, provenientes de cerca de 2,4 milhões de habitantes, abrangendo os municípios de Alcobaça, Alenquer, Amadora, Arruda dos Vinhos, Azambuja, Bombarral, Cadaval, Caldas da Rainha, Cascais, Lisboa, Loures, Lourinhã, Mafra, Nazaré, Óbidos, Odivelas, Oeiras, Peniche, Rio Maior, Sintra, Sobral de Monte Agraço, Torres Vedras e V. Franca de Xira.

Temos assim duas entidades (EPAL e ADTA) para a gestão da distribuição de água e tratamento do saneamento, ambas integradas no grupo Águas de Portugal.

Vejamos então as consequências deste movimento de transferências de competências dos municípios para duas entidades empresariais públicas que sempre estiveram na mira dos vários governos para a sua privatização.

A prioridade de uma entidade pública municipal que gere um sistema de água deve ter como preocupação o acesso de todos, sem discriminação, quer social quer económica, dado tratar-se de um monopólio natural.

Observando os últimos números da ERSAR relativamente ao sector, vemos que o mesmo já ultrapassa os 2 mil milhões de euros anuais, com um investimento acumulado já superior a 14 mil milhões de euros, e por isso,pelos enormes fluxos financeiros que gera e pelo facto de ser um monopólio natural, trata-se de um sector apetecível para as grandes empresas privadas do sector.

Politicamente, podemos afirmar que tantos os governos do PS, como do PSD/CDS, estão alinhados na privatização do sector, diferindo no ritmo e nos métodos utilizados, pese embora tal não se tenha verificado no chamado «governo da geringonça», onde a correlação de forças estancou por momentos este processo.

Importa ainda afirmar que o processo não avançou mais devido à resistência e à luta das autarquias, dos sindicatos e das populações, onde estas mostraram grande vontade e determinação na defesa da água pública.
Os municípios que agora pretendem concessionar a água e o saneamento para a EPAL e a ADTA deviam ter como preocupação a garantia de três aspectos que caracterizam o Poder Local Democrático: a defesa da gestão pública da água, a autonomia das autarquias locais e da acessibilidade económica dos munícipes.

Uma das regras que se impõe neste domínio é a necessidade permanente de assegurar a todos, em pé de igualdade, o acesso a todos os bens e serviços essenciais, o que se consegue, entre outras formas, com a sujeição desses bens e serviços a preços baixos e com a adopção de medidas que os façam chegar a todos.
Mais uma vez, o que observamos é a justificação de que financeiramente a situação é insustentável e por isso é necessário encontrar uma melhor solução, ou seja, entra-se no erro que considera que a sustentabilidade do sector só pode ser considerada via tarifária.

Em 2016, o então Secretário de Estado do Ambiente firmou que «quando houver condições para tal, criar empresas regionais fortes para o ciclo integral da água, com alta e baixa juntas, e um conjunto de municípios mobilizados para essa tarefa», seria uma prioridade, e por isso podemos estar a assistir agora à consolidação dessa vontade.

Reconhece-se que há uma diferença de métodos entre um governo do PSD/CDS e um governo do PS. Enquanto o primeiro forçou claramente a privatização, o segundo pressiona para a agregação e para a verticalização. Contudo, afirma ainda (o segundo) que a agregação não é obrigatória, dependendo da livre vontade dos municípios, mas depois, os que desejarem continuar a gerir os seus sistemas de forma isolada não terão acesso a fundos para reabilitação e remodelação de redes, ou até para intervenções na melhoria da sua gestão, com a introdução de novas tecnologias. Este aspecto está também presente no documento base da proposta servida aos municípios de Loures, Odivelas, Amadora e Vila Franca de Xira.

A agregação não é o caminho a seguir, porque é lesiva da autonomia de decisão de cada município, e prejudica a lógica de proximidade e o controlo político democrático relativamente a uma competência fundamental. A colaboração entre os municípios é importante, mas sem a obrigatoriedade de alijarem a responsabilidade na sua gestão. O estabelecimento de parcerias colaborativas, em torno de questões concretas relacionadas com a gestão das redes, com geometria e formato variável é uma das opções a tomar, mas também aqui é necessário que o Governo desbloqueie as verbas necessárias dentro dos vários quadros de financiamento disponível para colmatar os avultados investimentos que têm de ser realizados.

O modelo apresentado de concessão em análise propõe uma lógica de solidariedade entre sistemas municipais e nacionais, o que em abstrato não se trata de um mau princípio, mas ele não pode ser praticado apenas pela via tarifária, como é visível nos documentos apresentados. Podemos mesmo afirmar que estamos perante a criação de uma perequação tarifária, que pode aliviar no curto prazo a factura de alguns municípios aqui envolvidos, mas rapidamente harmonizará, ou melhor fará subir, as futuras tarifas.

Alerta-se ainda para a possibilidade de a concessionária ser ressarcida pelos municípios concedentes em relação ao caso base, no caso de se verificar uma determinada redução do volume total de água faturado e da estimativa de evolução do número de consumidores, o que agravará financeiramente a situação dos municípios.
Vemos ainda que as entidades municipais apresentam constrangimentos relativamente ao acesso aos fundos comunitário, protestando em diversos fóruns sobre este impedimento. Estes deviam estar à disposição das entidades gestoras municipais, assegurando a possibilidade de os municípios terem acesso a linhas de crédito com condições preferenciais (dado prestarem serviços públicos essenciais e com carácter não lucrativo) e sem contar com o limite da dívida municipal. No caso de Loures e Odivelas, que apresentam taxas elevadas de perdas de água, este aspecto do financiamento seria um bom contributo para a modernização do sistema destes municípios, com claras vantagens para as autarquias, para os consumidores e para a sustentabilidade ambiental.

O caso em específico, criando constrangimentos aos municípios relativamente às necessidades de financiamento elevadas de um sector em constante evolução, o Estado central por via deste processo, impõe as suas opções políticas, seja em matéria legal, regulamentar e de gestão societária, distorcendo assim o papel dos municípios no cumprimento de serviços públicos.

Não negamos que as economias de escala são sobretudo relevantes na fase de investimento, o que no nosso entender se aplica mais nos sistemas em alta do que em baixa. Por outro lado, analisando outras agregações ou concessões, verifica-se que a existência de economias de escala a nível da gestão não se considera determinante no conjunto dos gastos dos sistemas, não sendo por isso de aceitar como argumento para a concessão.

São apresentadas justificações tendo em vista a concessão e que no fundo são uma crítica directa aos municípios envolvidos: gestão eficiente, redução de perdas de águas, redução dos desperdícios de energia, optimização dos recursos humanos, combate à subfacturação e à fraude, manutenção da proximidade aos consumidores. Perante esta crítica patente nos documentos a que tivemos acesso, não existe reacção dos municípios?

Sendo o sector de bens e serviços essenciais, pela sua natureza, um sector em estrita relação com os indivíduos e dos quais estes em muito dependem, é correcto dizer-se que qualquer instabilidade que nesta área exista se repercutirá no indivíduo. Qualquer problema que surja neste sector económico, quer ao nível da qualidade, quer ao nível dos preços, quer, ainda, ao nível de acesso aos produtos no mercado, reflectir-se-á forçosamente na esfera individual e comunitária dos indivíduos.

Se a escassez de alimentos ou a falta de qualidade ou de abastecimento de água, bem como a falta de recolha de lixo, ou a falta ou interrupção do serviço de comunicações (nomeadamente telefone e correios), ou, ainda, a falta, ou interrupção do serviço de gás, luz eléctrica, causa inúmeros transtornos aos indivíduos (que sem eles, como é vulgar dizer-se, já não sabem viver), o mesmo se diga se os seus preços não se mantiverem estáveis e dentro de níveis suportáveis de um modo geral a todos.

Pelo projecto apresentado, existe um excessivo peso da vertente financeira para justificar a concessão, o que por si só é um risco para os utentes.

Vemos que o modelo apresentado de concessão em vez de colocar o foco na qualidade do serviço e na acessibilidade económica, coloca-o na recuperação integral de custos e na sustentabilidade económica na perspectiva de que a receita única provém das tarifas, ou seja, dos consumidores. O princípio da equidade e da solidariedade deve ser colocado numa lógica de redistribuição através do uso da função fiscal. Não faz sentido pôr um consumidor de fracos recursos de qualquer município cujo custo esteja abaixo do custo médio, a contribuir para pagar o acesso à água de um consumidor de elevado rendimento, só porque este reside num município em que o custo está acima do custo médio.

As economias de escala não são assim tão evidentes e neste caso em particular, dificilmente se vislumbram quando comparados com outros sistemas limítrofes, ou seja, se compararmos dos SIMAR de Loures e Odivelas com os SMAS de Sintra, vemos que ambos têm quase a mesma escala (utentes, dimensão empresarial, entre outros) mas o primeiro está numa situação económica e financeira muito distinta do segundo.

Tratar deste tipo de processo de agregação com simplicidade implica afundar o serviço público e aumentar os custos para o utilizador final. Isto está claro e comprovado por exemplo nas primeiras PPP da água realizadas em Portugal e que foram avaliadas negativamente em relatório próprio do Tribunal de Contas (Relatório n.º 02/2015 – 2ª Secção).

Há ainda outro aspecto caricato que é o da segmentação da actividade que passa a dispor de três intervenientes em baixa um em cada actividade, a saber: gestão do abastecimento de água a cargo de uma empresa, a gestão do saneamento noutra, e a gestão dos resíduos urbanos noutra entidade. Trata-se de uma opção errada não só do ponto de vista político como do ponto de vista da gestão.

As agregações de sistemas em baixa não trazem quaisquer economias de escala significativas, pois as mesmas apenas se verificam a nível dos investimentos em alta. O que importa é criar condições para que cada município possa efectuar os investimentos necessários para melhorar a eficiência hídrica dos sistemas com enfoque na redução de perdas.

Passando estas áreas para a EPAL e para a AdTA, os municípios envolvidos vão ser confrontados com uma diminuição das receitas correntes e no aumento das despesas correntes decorrentes da agregação, no primeiro caso com impacto na redução do limite da dívida total, no segundo caso com aumento de encargos para com terceiros. Também aqui e pela documentação fornecida não vemos uma análise às consequências desta alteração.

A palavra sustentabilidade tem sido usada para elevar as tarifas e penalizar os consumidores. Contudo, se por um lado, há que assegurar a todos o acesso a estes bens e serviços e a preços que para todos sejam comportáveis, também há que ter em conta que para serem prestados a todos de forma igual e a todos chegarem com elevados padrões de qualidade, em inúmeras situações isso implica a afectação de elevados recursos económicos, nomeadamente financeiros, e por isso esta responsabilidade constitucional não deve ser unicamente abarcada pelos municípios.

É necessário privilegiar a garantia de acesso dos consumidores, não se podendo deixar de considerar a relação entre o nível tarifário e o rendimento médio disponível das famílias. Não ter em conta este aspecto é conduzir directamente os municípios para o endividamento e daqui para a privatização do sector. Estes dois passos decorrem com grande velocidade, como se viu noutros casos que articularam dívida e legislação restritiva em relação ao endividamento dos municípios.

Nos processos de agregações, o mesmo acontecendo também nos processos de concessão, vem o Tribunal de Contas em algumas auditorias destacar que o efeito do processo levou a: perda de proximidade; diminuição acentuada do escrutínio democrático do exercício de uma competência municipal; perda de instrumento de política local; perda de capacidade na área da operação e manutenção; perda de independência financeira; entre outros.

Em suma, o que os municípios de Loures, Odivelas, Vila Franca de Xira, Amadora, Arruda dos Vinhos e Sobral de Monte Agraço devem garantir é a gestão pública da água e o controlo deste bem essencial à vida que tem de estar sujeito a lógicas de interesse público, de controlo democrático, e de resposta às necessidades das populações e do país. Com esta opção estas autarquias locais deixam de ter intervenção directa num sector que é vital para a vida das populações.

Não deixa de ser curioso que cinco destes municípios com presidências de Câmara do PS (Loures, Odivelas, Amadora, V. F. de Xira e Arruda dos Vinhos) tenham defendido acerrimamente a descentralização de competências da Administração Central para a Administração Local, e agora apostam numa iniciativa que se caracteriza pela centralização de funções e de competências na Administração Central! A diferença aqui é que o movimento financeiro é relevante, daí o interesse do Estado em capturar a competência às autarquias locais criando massa crítica para robustecer o grupo AdP, fazendo o caminho para a sua privatização.

A gestão dos serviços de água e saneamento constitui uma das principais competências dos municípios, pelo que a sua alienação implica que o município abdica da sua capacidade de gestão directa dos sistemas, ficando dependente de outros, ao mesmo tempo que se caminha na transformação da água num negócio e na criação de condições para uma ulterior privatização, como o caso da privatização da Empresa Geral de Fomento do sector dos resíduos tão bem demonstra.