EXCERTO DO ARTIGO “Afirmar Abril, reforçando o financiamento local” (pg.42), de José Maria Pós-de-Mina
revista poder local, n.º 161, dezembro 2023
Uma das competências base dos municípios, a gestão dos serviços de águas, águas residuais e a gestão dos resíduos urbanos, tem vindo a ser disputada por interesses privados, tal é o peso que, do ponto de vista do potencial de gerar lucros, tem, quando sobreposto ao interesse público. E essa disputa a favor de interesses privados, tem vindo a ser incrementada por diversos governos ao promoverem a captura directa da competência municipal, com transferência directa ou indirecta para o sector privado. Foi o que fizeram com a criação dos sistemas multimunicipais, ou de comando indirecto através da forma como condiciona o acesso aos fundos comunitários, ou como articula ou complementa o seu papel com o da entidade reguladora, tendo como características comuns ignorarem o princípio da autonomia local. Situação a que acresce ou que se integra na realização de uma forte campanha no sentido de valorizar a gestão privada e empresarial, colocando a tónica na questão da sustentabilidade financeira, leia-se em português mais prosaico – aumento das tarifas -, em vez de ser na melhoria da eficiência e da qualidade do serviço, mantendo-o sempre na esfera pública no que são os elos principais da cadeia de valor do sector. E essa sustentabilidade financeira é, em regra garantida, através da imposição da tarifa ter de garantir uma remuneração mínima do capital investido. Dito de outra forma: mesmo que a gestão seja ineficiente e o interesse público seja secundarizado o nível de lucro está sempre garantido pelo reflexo no sistemático aumento das tarifas.
Planos como o PERSU 2030 e o PENSAARP 2030 são instrumentos da política governamental que são utilizados como forma de comandar o sector, numa perspectiva que não é a mais adequada e com prioridades que são desfasadas do que é necessário. E refira-se a propósito que não deixa de ser caricato que o PENSAARP sendo um plano estratégico tenha sido aprovado por um governo em gestão.
Não descurando a importância dos serviços de águas e saneamento, merece menção especial neste artigo a situação do sector dos resíduos. Sector que já objecto de privatização seja pura, ou indirecta quando realizada através de processos de concessão. Privatização cujas consequências são uma das causas com que se defronta hoje. Operação esta que tem sido desenvolvida em claro desrespeito da vontade dos municípios, quer enquanto detentores da competência originária, quer enquanto accionistas das empresas em questão. Municípios que participaram como accionistas num quadro de empresas públicas, criadas no âmbito dos sistemas multimunicipais, e que ficaram aprisionados a essa participação após o processo de privatização maioritária dos sistemas através de decisões tomadas pelos Governos. Ao mesmo tempo que isto acontece o governo aposta num amento significativo da TGR – Tarifa de Gestão de Resíduos, cujos valores causam uma grande pressão sobre as finanças dos diversos intervenientes, acabando por serem os consumidores finais a terem de pagar uma tarifa cujo valor é injustificado, injusto e adversário do ambiente. TGR que, conforme já demonstrado nesta revista, se transformou num verdadeiro imposto tendente a financiar maioritariamente áreas diferentes do sector em que é gerada. A dimensão e desproporcionalidade da TGR levou mesmo os municípios a alterarem maioritariamente a sua posição, passando de um voto contra para a aprovação de uma moção, em sede de Congresso da ANMP, onde reclamam profundas alterações e reduções no seu valor.
O sector enfrenta os desafios da melhoria da qualidade dos serviços, da imposição da obrigatoriedade de desassociar as tarifas do consumo de água, da implementação da recolha dos biorresíduos, ao mesmo tempo que se confronta com o aumento brutal dos custos quer os da gestão em baixa, quer os custos das tarifas que lhes são impostas pela ERSAR na sequência do que lhes propõem as entidades gestoras (maioritariamente privadas). Esta situação cria graves problemas e pressões nas tesourarias e orçamentos dos municípios, com uma tendência para a redução dos graus de cobertura de gastos, evidenciando a urgência para a tomada de medidas de fundo, face à gravidade da situação.
Medidas que passam pela reversão da privatização das empresas, pela redução da TGR, pela disponibilização de recursos financeiros comunitários ou do orçamento do Estado para os investimentos que são necessários onde se incluem os que se consideram imprescindíveis face às implicações decorrentes dos objectivos e metas definidos no PERSU 2030 e, pela introdução de medidas de melhoria dos processos de recolha e de incentivo à recolha selectiva com a sua valorização económica, e pela eliminação da drenagem de fluxos financeiros para remuneração de capitais próprios, entre outros.
Para ilustrar o que tem acontecido, nada melhor do que apresentar um exemplo de evolução da tarifa de deposição, neste caso da AMARSUL, que integra o grupo SUMA, que é complementado com a evolução da TGR.
Mesmo para qualquer leigo a leitura do gráfico demonstra que a evolução da tarifa não se pode justificar pela evolução exponencial dos gastos de exploração. Vejamos. Em 2015 a AMARSUL passou a integrar o grupo Mota-Engil por via da aquisição da Empresa Geral de Fomento, detentora de 51% do seu capital (mantendo-se os restantes 49% na posse dos municípios). Numa primeira fase (2015 a 2019) a tarifa manteve-se estável em torno dos 20€/tonelada (19,89€ 2010; 23,75€ 2015 e 20,48€ em 2019). Mais uma vez, a evolução da tarifa em valor estável durante o primeiro triénio pós-privatização parecia dar argumentos aos liberais sobre “as vantagens da privatização”. Mas vejamos o que realmente aconteceu. Em simultâneo com esta evolução de aparente estabilidade da tarifa a SUMA transformou uma empresa até aí geradora de resultados positivos, numa empresa geradora de prejuízos (-152 mil euros em 2018; – 4,270 milhões de euros em 2019), resultados que só se podem aceitar no quadro de uma estratégia de pressionar futuramente a tarifa. E o resultado aí está. De 2019 para 2024 a tarifa tem um incremento de mais 276%. Poderemos dizer que nem os efeitos muito gravosos para as economias mundiais causados pelas recentes guerras, provocaram tal devastação.
Com o incremento da tarifa para a 43,58€ em 2022 a AMARSUL passou a apresentar um lucro de 1,7 milhões de euros. Analisando os valores noutra ótica. Com um aumento de 113% na tarifa a SUMA gerou um incremento de 5,97 milhões de € nos resultados (-4,27 milhões para +1,7 milhões). A questão que fica é de procurar saber quanto irão subir os lucros com um incremento não de 113%, mas sim de 276%. Naturalmente, que mesmo para um leigo fica desde logo claro que a subida exponencial da tarifa se transformará numa subida exponencial dos lucros e não necessariamente numa alteração estrutural do sistema. E isto porque se mantém o princípio do serem os mesmos de sempre a pagar.
É fácil verificar por este exemplo a que se podiam juntar muitos outros, que estas tarifas se tornam incomportáveis o que torna evidente, que mais do que nunca é necessário olhar de outra forma para este sector e promover as alterações indispensáveis para que cumpra a sua função de serviço público a favor das populações e não para alimentar grupos económicos.