Em Portugal, o acesso universal aos serviços públicos de água é, como entre outros, um direito conquistado na Revolução de Abril de 1974. Por vezes esquecemo-nos. Coexistiam antes de 1974, serviços públicos e privados de água, mas uma enorme percentagem da população não tinha acesso aos serviços, não tinha capacidade económica para usufruí-los – nem lhe era reconhecido o direito a eles, nem a responsabilidade do Estado por proporcioná-los. À data, os níveis de atendimento eram sensivelmente os seguintes: Abastecimento de água – 49%; Recolha de águas residuais – 32%; Tratamento de águas residuais – 1%. Estes números são elucidativos do gigantesco atraso que se vivia. Doenças como a cólera conheceram surtos até 1974, e mesmo alguns anos depois.
É com a transformação social desencadeada pela Revolução, com a força criadora do Poder Local Democrático e o esforço das populações, que se transforma radicalmente a situação calamitosa herdada.
Em 1994, as taxas de atendimento atingem já: Abastecimento de água – 84%; Recolha de águas residuais 63%; Tratamento de águas residuais – 32%.
A Constituição da República de 1976 consagra e consolida a provisão dos serviços públicos de água, que se torna uma obrigação do Estado, vedada aos privados, uma competência que se manteve exclusivamente autárquica até 1993.
É já sobre a imposição das teses neoliberais que a situação viria a ser profundamente alterada, visando a transformação da água num negócio, o que significa que terão que ser os consumidores a pagar todos os encargos. Incluem-se aqui também as autarquias locais. E sendo um negócio, tem ainda expressão na forma como são geridos os sistemas, mesmo os de carácter público.
Contudo, a luta persistente, qualificada e forte das populações, trabalhadores do sector, sindicatos, associações – como a Água Pública, partidos políticos de esquerda, nomeadamente do PCP e de “Os Verdes”, tem sido determinante para manter o sector em mãos públicas, quer dos serviços municipais, cujas concessões, hoje nas mãos de capital estrangeiro, consequência indissociável da privatização, estão muito aquém do que ambicionavam os seus mentores (representam 12% das entidades gestoras), quer do grupo Águas de Portugal.
Perante as gravosas consequências da privatização, como é o caso de Fundão e Covilhã, vários municípios retomaram o controlo dos serviços, casos de Mafra – a 1ª autarquia a privatizar, em 1994 -, Fafe, Paredes, Setúbal (decidida pelo PS), Alcanena, existindo outros processos em curso.
Mas as ameaças mantêm-se, e a escassez aguça ainda mais o apetite privado pela água de todos, através da utilização discriminatória dos fundos comunitários, para forçar a agregação dos serviços municipais, com o outsourcing nas empresas da Águas de Portugal, e nos serviços municipais com os contratos de performance, em que as autarquias entregam aos privados as medidas de eficiência hídrica que deviam assumir. Juntam-se no plano europeu, a tentativa de liberalizar os serviços de águas e a pressão para a subida dos custos.
Cinquenta depois do 25 de Abril, importa salientar que o acesso à água e ao saneamento, hoje generalizado, e com elevados níveis de qualidade, foi conseguido com gestão pública e com investimento público: Abastecimento de água – 97%; Recolha e tratamento de águas residuais – 86%. É também por isto que o sector é apetecível. Há problemas, mas a vida demonstra que a solução para os resolver não é privatizar. Isso seria um erro que pagaríamos com mais desigualdades. A água é um bem público, um direito humano fundamental, cuja propriedade, gestão e provisão cabe por inteiro à esfera pública e à deliberação democrática. O que se exige, é construir serviços públicos de qualidade, próximos das populações, dotados dos meios adequados para garantir o acesso universal à água e ao saneamento e assegurar melhores condições de trabalho.
É com água pública que se regam os cravos vermelhos!