Defender a água pública! Defender um direito de todos!

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Jorge Fael – Presidente da Associação Água Pública

Tal como o ar que respiramos a água é essencial à vida. O acesso à água é um direito. Um direito reconhecido pelas Nações Unidas em 2010, culminando um longo processo de lutas sociais. Um direito que significa democracia, soberania, protecção da natureza, desenvolvimento. Em contraste com esta visão, que pressupõe uma responsabilidade colectiva e políticas baseadas nos princípios da universalidade, solidariedade e igualdade, existe uma outra, que considera que a água é uma mercadoria. Um bem que tendo valor económico deve gerar lucros. Sob esta perspectiva, as alterações climáticas aguçam ainda mais a cobiça, pois quanto menor for a disponibilidade hídrica, a escassez de água potável, maior o valor agregado aos produtos em razão do “preço” da água. A inclusão da água nos acordos e tratados ditos de “livre comércio”, como é o caso do Acordo União Europeia e o Canadá (CETA), com o Japão, e o Acordo sobre Comércio de Serviços (TISA), são outra grave ameaça.

Em Portugal, os sucessivos governos têm materializado a opção pela água como bem mercantilizável, a criação do mercado da água e a privatização, sob diversas formas, envolvendo a água da natureza, a administração pública da água, o território, as infra-estruturas e, claro, os serviços públicos de água e saneamento de águas residuais. Todo o quadro legislativo tem sido orientado com esse objectivo: Plano Nacional da Água, Planos de Bacia, PEAASAR; a Lei da Água (Lei n.º 58/2005) e a Lei da Titularidade dos Recursos Hídricos (Lei n.º 54/2005), legalizam o mercado da água – o mercado de títulos/direitos da água, não foi instituído no concreto, mas está legalizado desde 2005, e possibilitam o controlo pelos concessionários privados de bacias hidrográficas inteiras, dos leitos de rios e margens, das infraestruturas hidráulicas e de competências públicas como o licenciamento, cobrança e fiscalização. No sector da água, o regime jurídico forçou a empresarialização, a expropriação de competências autárquicas em «alta» e a privatização em «baixa». Paralelamente, reforçaram-se os poderes da ERSAR (Lei n.º 10/2014), como elemento central na promoção do mimetismo de mercado no sector: eficiência de mercado, preços eficientes, emissão de pareceres vinculativos nas tarifas. Entretanto, a primeira proposta de regulamento tarifário foi severamente criticada pelos Municípios.

E é elucidativo que seja a própria AEPSA – Associação que reúne as empresas privadas, a dizer que o regime legal das concessões em vigor não transfere de forma adequada transferência de riscos para o sector privado (!).

A estas políticas neoliberais têm-se oposto as populações, sindicatos, trabalhadores, eleitos locais e movimentos, levando a cabo inúmeras lutas, em alguns casos vitoriosas, em particular no combate às privatizações/concessões da água, designadamente de consumo humano, cuja distribuição em «baixa», isto é, até à casa de cada um de nós, permanece maioritariamente na esfera dos municípios, ao contrário da chamada «alta», que foi concentrada nas empresas multimunicipais do grupo Águas de Portugal (AdP), parte da estratégia privatizadora.

A derrota da maioria de direita PSD/CDS, nas eleições legislativas de 4 de Outubro de 2015, para a qual contribuíram os combates em defesa da água pública, permitiu interromper, ou pelo menos desacelerar, o processo de privatização que estava em marcha.

Porém, como já aqui se escreveu , a legislatura anterior (2015-2019) ficou muito aquém do que se exige e é necessário para garantir a defesa da água como direito universal das populações e como serviço público, patente desde logo no chumbo da iniciativa legislativa de cidadãos, denominada «Protecção dos direitos individuais e comuns à água», promovida pela campanha Água é de todos (www.aguadetodos.com), e que resultaria na consagração do direito à água, no impedimento de novas privatizações e na reversão progressiva das existentes.

Esse período ficou, no entanto, marcada por dois acontecimentos muito positivos: a (re)municipalização da água em Mafra, a primeira no país, e a aprovação, pela Assembleia da República, do princípio da não privatização do sector da água. Em relação ao primeiro – ver artigo na versão online da revista , este foi um passo celebrado. Afinal, Mafra foi o primeiro município a privatizar os serviços de água, em 1994, e agora, por razões económicas e técnicas, recuperava o serviço para a gestão pública. Acresce que, sendo uma autarquia gerida pela direita, esta decisão não podia ser acusada de motivações ideológicas, trazendo ainda mais à tona os efeitos negativos da gestão privada sobre as populações e o próprio município. É, pois, fundamental que a gestão pública municipal se traduza numa oportunidade para construir serviços públicos de qualidade ao serviço das populações e dos trabalhadores dos actuais SMAS de Mafra, e sirva para despoletar outros processos de recuperação dos serviços de águas para as mãos públicas, de onde aliás nunca deviam ter saído.

Relativamente ao segundo acontecimento, a Assembleia da República aprovou, em 2017, com os votos favoráveis de PS, PCP, BE, «Verdes» e PAN, e os votos contra de PSD e CDS, a quinta alteração à Lei da Água, estabelecendo o novo princípio da não privatização do sector da água. O novo diploma, a Lei n.º 44/2017 de 19 de junho, dispõe no seu artigo 3.º, alínea b, o «Princípio da exploração e da gestão públicas da água, aplicando-se imperativamente aos sistemas multimunicipais de abastecimento público de água e de saneamento». Ao contrário do que previa a proposta inicial apresentada pelos «Verdes», a exclusão dos sistemas municipais significa que estes podem continuem a ser privatizados, com as gravosas consequências conhecidas. Ainda assim, este foi um passo importante para reforçar o carácter público da Águas de Portugal. Mas como sabemos, isto não basta – veja-se por exemplo o elevado nível de outsourcing. É preciso uma gestão fortemente comprometida com o interesse público.

Em sentido oposto, o executivo PSD de Vila Real de Santo António, entregou no final de 2018, os serviços de águas – o único processo de concessão em curso no País, por 30 anos à Aquapor, que assumiu a gestão no dia 1 de Janeiro de 2019. À semelhança de outros, este é um negócio com graves consequências. De acordo com cálculos efectuados pelo STAL, nos primeiros sete anos, a factura doméstica de 5m3 (água, saneamento e resíduos, custará mais 45%); a de 10m3, mais 53% e no consumo não-doméstico, a factura de 10m3 subirá 60%. A estes aumentos acresce uma “taxa de inflacção” de 2,5% durante o período da concessão. A Câmara fica obrigada a garantir 80% das receitas esperadas pelo privado, garantindo uma taxa de remuneração dos capitais investidos (TIR) de 9,43% (uma “renda” invejável para um negócio sem risco) e se a taxa baixar 20%, tem o direito a ser compensado pela Câmara, sendo uma das opções, a subida das tarifas. O privado embolsa ainda 4% sobre o valor anual da facturação, por conta de um contrato designado de assistência técnica e de gestão para, pasme-se, assegurar e promover a eficiência da concessão. Com este “expediente” a Aquapor arrecada 14 milhões e 778 mil euros. Tudo somado, o privado arrecadará mais de 38M€ em dividendos, lucros que deixarão de ser reinvestidos na melhoria dos serviços e das condições de trabalho. Quanto aos trabalhadores, conforme foi noticiado à data, nove teriam recusado transitar da empresa municipal que assegurava os serviços, a SGU, para o concessionário privado, a Águas de Vila Real de Stº António, correndo assim o risco de despedimento por motivo de “extinção do posto de trabalho”, apesar das promessas em contrário.

Agregação rima com privatização

Os sucessivos governos tudo têm feito para impor a concentração dos serviços de água, primeiro, retirando aos municípios a competência em «alta», com a criação dos sistemas multimunicipais e a sua entrega ao grupo Águas de Portugal, e agora, utilizando novamente como chantagem os fundos comunitários, forçar a agregação dos serviços municipais de água «em baixa», seja integrando empresas controladas pela Águas de Portugal, seja através da constituição de empresas intermunicipais. Incentivada ao longo da última legislatura, esta é uma das medidas inscritas no Programa do actual executivo: “Garantir o equilíbrio económico e financeiro dos sistemas municipais, nomeadamente através da agregação dos sistemas de menor dimensão”. Um programa diga-se, onde não se encontram palavras como direito, ou gestão pública. O primeiro contrato, formalizado em Julho, foi a parceria público-pública da Águas do Alto Minho, com a participação do grupo Águas de Portugal, estando previstos vários projectos de agregações. É certo que a privatização formal é mais difícil, seja porque é possível incluir uma cláusula contratual no sentido de fazer cessar a parceria caso a AdP saia da esfera pública, seja em resultado do princípio da não privatização da água já referido. Porém, ao contrário da água, a política anda para trás.

Para os privados, a agregação das entidades gestoras é uma oportunidade. Tal como afirmava um dos seus antigos responsáveis: “A partir do momento em que existe uma maior dimensão, uma maior capacidade técnica, maior capacidade financeira, há todo um desenvolvimento do mercado e das oportunidades que podem ser apropriadas para o sector privado em todas as suas vertentes”. “As oportunidades vão desde o simples fornecimento de equipamentos, à elaboração de projectos, passando pela realização de obras, fornecimento de soluções e serviços e operação e manutenção. As parcerias público-privadas ligadas à redução de perdas, aos contratos “performance” e à eficiência energética também não podem ser descuradas, defende. Nem mesmo a possibilidade de concessões. “Por que não? Admito que venham a haver entidades intermunicipais que optem por uma gestão delegada completa numa concessão ou partilhada, numa parceria”. Já o patrão do grupo Mota-Engil, após ter vendido a Indáqua, uma das concessionárias mais importantes, a um fundo de investimento, entretanto vendida novamente a um outro fundo , em resposta a entrevista do jornal “Público”, se a Mota-Engil está a pensar investir na agricultura, responde desta forma: «A questão da rega, do abastecimento de água, das salinas, são tudo oportunidades a que estaremos atentos. Se houver uma privatização do sector da rega e distribuição, estaremos atentos, claro. Há poucas condições neste país para que a água tenha um crescimento grande. É entendido aqui por todas as áreas que a água é um bem público e que não devem ser privados a fazer [a sua gestão]. Mas a sua distribuição e a questão da gestão de projectos de rega, porque não?».

Agregações em curso
Fonte: Elaboração própria

Águas do Alto Minho: “parceria” entre a Águas de Portugal e os municípios de Arcos de Valdevez, Caminha, Paredes de Coura, Ponte de Lima, Valença, Viana do Castelo e Vila Nova de Cerveira. Os municípios de Melgaço, Ponte da Barca e Monção rejeitaram integrar a empresa.

Águas do Baixo Alentejo, “parceria” entre a Águas de Portugal e os municípios de Aljustrel, Almodôvar, Barrancos, Beja, Castro Verde, Mértola, Moura e Ourique – rejeitada pelas Assembleias Municipais de Beja e Castro Verde.

Empresas Intermunicipais:

Águas do Baixo Mondego e Gândara, Empresa Intermunicipal, Mira, Montemor-o-Velho, Soure.

Ambiente do Médio Tejo, Empresa Intermunicipal, Ferreira do Zêzere, Mação, Ourém*, Sardoal, Tomar (implicou a extinção dos SMAS), Vila Nova da Barquinha.

Resíduos do Nordeste, Empresa Intermunicipal (responsável pelos serviços de recolha e tratamento de rsu, actividades que estão concessionadas a privados), Alfândega da Fé, Bragança, Macedo de Cavaleiros, Miranda do Douro, Mirandela, Mogadouro, Vila Flor, Vimioso e Vinhais.

*Ourém aguardará o fim do contrato de concessão com a Bewater (mais nove anos).

Águas do Interior Norte, Freixo de Espada à Cinta, Torre de Moncorvo, Vila Real, Mesão Frio, Murça, Peso da Régua, Sabrosa, Santa Marta de Penaguião, Vila Real, o que implica a extinção da EMAR-VR, empresa municipal.

APIN – Empresa Intermunicipal de Ambiente do Pinhal Interior, que reúne Alvaiázere, Ansião, Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Góis, Lousã, Pampilhosa da Serra, Pedrógão Grande, Penacova, Penela, Vila Nova de Poiares.

Águas do Douro Sul, Armamar, Lamego, Moimenta da Beira, Penedono, Resende, S. João da Pesqueira, Sernancelhe, Tabuaço, Tarouca. De fora, ficou Cinfães porque integra as Águas de Portugal, juntando-se Vila Nova de Foz Côa (Guarda).

Águas do Alto Alentejo, Alter do Chão, Arronches, Castelo de Vide, Crato, Fronteira, Gavião, Marvão, Nisa, Ponte de Sor (Avis, Monforte e Portalegre ficam de fora, assim como Campo Maior e Elvas, que têm concessões a privados).

Águas Públicas da Serra da Estrela, Empresa Intermunicipal, Gouveia, Oliveira do Hospital, Seia.

Em Viseu, o Tribunal de Contas recusou a transformação dos SMAS de Viseu em empresa municipal, o que inviabilizou a constituição da empresa intermunicipal Águas de Viseu.

É evidente que o efeito de «escala» e o esforço colectivo dos municípios podem contribuir para a prestação de um serviço com mais qualidade às populações, mas outra coisa é a obrigatoriedade de abdicar da responsabilidade de gestão, como resulta da agregação em curso. Este caminho, particularmente grave no caso da perda do controlo para o grupo Águas de Portugal, terá sempre como consequências: a perda de autonomia e decisão de cada município, a fragilização do controlo político democrático de uma competência fundamental, o afastamento dos serviços das populações, a redução de direitos laborais e o aumento significativo dos preços, em obediência ao modelo de recuperação de custos.

A gestão da água diz respeito a todos, pelo que é fundamental exigir que qualquer decisão nesta matéria seja amplamente debatida tendo em vista a defesa da gestão pública municipal, por exemplo, impedindo/blindando a entrada de privados no capital da empresa intermunicipal, recusando e combatendo a subcontratação de funções, salvaguardando integralmente os direitos dos trabalhadores envolvidos.

Uma política para defender a água pública

O reconhecimento da água como bem público e social e como direito humano fundamental, é incompatível com uma política e uma governação orientada para a desresponsabilização do Estado, para a subordinação do sector ao mercado e para garantir a acumulação de lucros privados. O que se exige é uma política fortemente vinculada com o cumprimento do disposto na Constituição, com o respeito e a fruição universal dos direitos à água (direito humano à água e ao saneamento; direito à água como ambiente; direito à água como meio de produção). Uma política em que o Estado assuma diretamente a responsabilidade inalienável da gestão da água, do domínio público hídrico e dos serviços de águas, garantindo a fruição dos direitos de todos os cidadãos, o estabelecimento de critérios de afectação dos direitos de uso numa perspectiva de desenvolvimento equilibrado, saúde bem-estar e segurança dos cidadãos e nunca de mercantilização. Este é um caminho que pressupõe, entre outras, as seguintes medidas:

  • Consagração do direito à água e impedimento da mercantilização dos recursos hídricos e dos serviços de água e a reversão dos processos existentes e cessação da privatização da autoridade pública sobre os recursos hídricos.
  • Reconstrução da Administração Pública de Água, permitindo-lhe cumprir cabalmente as suas funções: planeamento; licenciamento; fiscalização; conhecimento, investigação e inovação.
  • Um planeamento participado, articulado e interligado com o desenvolvimento agrícola, industrial, energético, abastecimento de água e saneamento, saúde, ordenamento do território e uso do solo, segurança das populações, ecossistemas, produção, ambiente e lazer, biodiversidade.
    • O reforço e consolidação do carácter público das entidades gestoras, nomeadamente das empresas do grupo Águas de Portugal e outras concessionárias, como a EDIA SA.
  • Valorização da gestão publica municipal e dos trabalhadores do sector.
  • Reforço do investimento público em obras de armazenamento de fins múltiplos geridas pelo Estado com o objetivo de interesse público.
  • Medidas de proteção e conservação da água, do uso eficiente da água, da gestão da procura, tendendo para uma situação de permanência das utilizações que caia dentro dos limites de disponibilidade dos recursos existentes.
  • Defesa da soberania, do interesse nacional, exigindo nomeadamente uma partilha equitativas das águas nas bacias internacionais.
  • Uma política de financiamento que promova a realização dos direitos à água, combinando apoios/financiamento público com um sistema de preços orientado para o serviço público.

Só pública a água é de todos! Defendamo-la!