Intervenção da Associação Água Pública na Audição promovida pelo Parlamento no âmbito da preparação da participação parlamentar portuguesa no 8.º Fórum Mundial da Água.
Senhores Deputados,
Agradeço em nome da Associação Água Pública a oportunidade de participar nesta audição.
Nunca é demais repetir: a água é o suporte de todas as formas de vida, vegetal, animal e humana, insubstituível, essencial a todos os processos naturais, estruturante da habitabilidade dos territórios e indispensável a quase todos os sectores produtivos. O direito à água, reconhecido pelas Nações Unidas em 2010 como um direito humano fundamental, faz parte do direito à vida. O acesso à água não é pois uma questão de escolha. Todas as pessoas, independentemente da sua condição económica e social ou outra, devem ter direito ao abastecimento de água e ao saneamento no seu local de residência, trabalho e permanência habitual, com a proximidade, quantidade e qualidade adequadas à sua segurança sanitária e conforto.
O direito à água é também uma questão de democracia, de soberania, de segurança ambiental, de protecção da natureza e de desenvolvimento.
Mas é justamente por a água se constituir como um bem indispensável à vida, factor de domínio, de vulnerabilidade das políticas de soberania e controlo público, fonte de lucro à custa das economias de milhões de consumidores e da sobrevivência de milhões de seres humanos que o capitalismo, a começar pela intervenção dos seus principais instrumentos, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do Comércio e de organizações como o Conselho Mundial da Água, apoiados por políticas e governos ao seu serviço, como é hoje o caso do Brasil, tem visto aí uma imensa fonte de negócio. Como afirma Swyngedouw (2004:36) «o capitalismo é claro, sempre foi e continuará sendo um sistema que tenta derrubar todas as barreiras existentes e incorporar o que pode à sua lógica própria de busca de lucro.»
Daí o avanço das poderosas transnacionais sobre a água cuja ganância tem crescido exponencialmente. Mas, com a onda de contestação às privatizações em todo o mundo e as decorrentes dificuldades, as grandes transnacionais da água têm vindo a alterar a estratégia: – Estão a vender as empresas concessionárias de serviços de águas e reorientam-se para os grandes monopólios das origens de água, para a água da natureza e para os terrenos envolventes:
- As albufeiras de barragens, com o controlo dos rios e a capacidade de armazenamento de água e de energia;
- os próprios rios;
- os aquíferos subterrâneos;
- os portos,
- a navegação,
- os peixes,
- as praias marítimas e fluviais.
Simplesmente, “concessão” de exclusividade de uso ou poluição e monopólio do uso e revenda.
O “negócio da sede” adquire hoje novos contornos ameaçadores com a inclusão da água nos acordos e tratados ditos de “livre comércio”, como é o caso do Acordo Económico e Global entre a União Europeia e o Canadá (CETA) que contestamos.
E é do negócio da água, da indústria da água, dos mercados da água, que trata o Fórum Mundial da Água, cuja natureza, origem e objectivos são claros: promover a privatização.
A este respeito, cito Maude Barlow: «Como organizações de defesa global da água, há muito que nos opomos ao papel do Fórum Mundial da Água na promoção da privatização e mercantilização da água. O Fórum Mundial da Água não é um espaço legítimo de decisão política. É uma feira empresarial organizada pelo Conselho Mundial da Água – um consórcio de múltiplas partes interessadas em promover soluções para a crise da água que serve os interesses das multinacionais» (…) As políticas de água não devem ser discutidas ou elaboradas à porta fechada em caras feiras empresariais. As multinacionais cujas ações são responsáveis pela destruição de bacias hidrográficas ou por negarem o acesso às populações mais vulneráveis não deve ser recompensado com um assento na mesa de tomada de decisões.» fim de citação.
Acresce que a realização deste evento no Brasil, país que possui 12% da água doce do planeta e a maior bacia hidrográfica do mundo, constitui neste preciso momento, um motivo de preocupação acrescida, e as razões são evidentes: como dizem os nossos companheiros do Brasil: «O golpe também chegou à água»!
Em contraponto ao Fórum Mundial, realiza-se o Fórum Alternativo Mundial, sob o lema «Água é um direito, não é uma mercadoria», que reúne os movimentos sociais, os sindicatos, organizações diversas, população. No seu Manifesto, afirma-se: a «água deve estar a serviço dos povos de forma soberana, com distribuição da riqueza e sob controlo social legítimo, popular, democrático, comunitário, isento de conflitos de interesses económicos, garantindo assim justiça e paz para a humanidade”. fim de citação.
É neste plano que nos colocamos.
Como temos insistentemente reafirmado, as crises que atingem a Humanidade e a sua casa, incluindo a água, não se resolve insistindo num modelo de crescimento predador, extractivista e destrutivo. Precisamos rapidamente de outra organização dos processos produtivos claramente orientados para o interesse comum, para a sustentabilidade, para o respeito pela natureza, o que só é possível num quadro de uma visão de longo prazo, sólida, integrada e planeada.
Precisamos de recuperar e valorizar a função ecológica e social da água como suporte de ecossistemas e condicionante fundamental do clima, estabelecendo programas de preservação e de recuperação do seu equilíbrio, de ser mais eficazes e eficientes na implementação das medidas que definimos e de ser mais participativos e mais exigentes na construção, e definição das políticas públicas e da sua efectivação.
Precisamos de reconstruir uma Administração Pública da Água com capacidade para mapear as áreas de cheias, para proteger as origens de água, para conhecer a água subterrânea, para agir e cumprir as funções que lhes estão cometidas em domínio fundamentais como a monitorização, a fiscalização, o combate à poluição, ao invés da desresponsabilização do Estado, da concentração e extinção cega de organismos que foi abrindo campo à impunidade, patente por exemplo na poluição do Rio Tejo, alvo de crescentes descargas poluentes, mas também em outros rios e ribeiras nacionais.
Precisamos, em síntese, como afirma Maude Barlow, que o direito à água seja o centro das políticas e dos planos.
E o que a vida e a realidade têm demonstrado, quer aqui, quer em outros países é que, partindo do reconhecimento pleno do direito à água e ao saneamento, a melhor forma de o garantir é por intermédio de serviços de água e saneamento controlados e geridos por entidades públicas, sem fins lucrativos.
Nos últimos anos, 235 cidades espalhadas pelo mundo terminaram a sua relação amorosa com a privatização e recuperaram os serviços municipais para o controlo público. Isto permitiu verbas para combater a poluição e assegurar uma distribuição da água mais equitativa.
Em Portugal, é particularmente simbólico que o primeiro caso de remunicipalização tenha lugar em Mafra, que foi o primeiro município a privatizar os serviços de água e saneamento – não faltando razões em muitos outros casos para que essa decisão seja tomada.
Mas encaramos com muita preocupação o processo de privatização dos serviços de água que em curso em Vila Real de Santo António, que terá graves consequências para a população e os trabalhadores desses serviços, como de resto tem acontecido na generalidade.
A nossa mensagem centra-se – e continuará a centrar-se, enquanto for necessário – na consagração e implementação do direito humano à água e ao saneamento em Portugal, pela qual lutamos há anos, pela gestão pública de qualidade, democrática, contra os fortíssimos interesses dos negócios da água.
Recordamos que, em 2013, mais de 43 mil cidadãos eleitores subscreveram e propuseram à Assembleia da República o Projecto de Lei “Protecção dos direitos individuais e comuns à Água”. Este projecto transpunha para a legislação nacional o direito à água e ao saneamento nos termos aprovados pela Assembleia da Nações Unidas e travava a privatização.
Este projeto foi votado duas vezes na Assembleia da República; em Outubro de 2014 e novamente, reapresentado pelo PCP e pelo BE, em Dezembro de 2016. Foi em ambas as vezes rejeitado na generalidade por maioria – na primeira vez, pelo PSD e CDS; na segunda vez, quando esses dois partidos somados já não constituíam maioria, pelo PSD, CDS e PS, que também votou contra, quando o seu voto foi necessário para impedir que algum dos artigos do Projeto de lei fosse aprovado; votaram sempre favoravelmente o PCP, o BE e o PEV e, em 2016, também o PAN.
Em Junho de 2017, o relatório de missão a Portugal do Relator Especial das Nações Unidas sobre os direitos humanos à água e saneamento, Léo Heller, sublinha como principal preocupação não estar reconhecido na Lei Portuguesa o direito fundamental à água e ao saneamento.
E embora isso não seja suficiente é um passo decisivo.
Mas como sabemos, não pode haver direito humano efectivo à água, se alguns estão autorizados a explorar a água de forma lucrativa.
O que as pessoas querem, como demonstram todos os inquéritos e as dinâmicas de mobilização social é água pública e direito à água – não querem liberalização, privatização ou regulação tecnocrática.
Basta ouvir as pessoas, é este o apelo que deixamos aos Senhores Deputados!
Obrigado.
Lisboa, 28 Fevereiro de 2018