FONTE: REVISTAPODERLOCAL.PT
Câmara de Mafra decidiu resgatar a concessão da exploração da água e esgotos no município. Esta decisão, unanimemente aplaudida, envolve uma curiosidade: Mafra foi o primeiro município a decidir a privatização da água em 1994 e é agora novamente o primeiro a decidir pela reversão dessa concessão. Reconheceu que a privatização não serve o interesse público.
A esta decisão não é estranha a luta das populações contra as privatizações e em especial as que exploram serviços públicos.
No caso de Mafra é interessante notar que a mesma força política que privatizou (o PSD com maioria absoluta no município), reconheceu que tal privatização, não é solução que defenda o interesse público e com o resgate do contrato de concessão, os preços da água vendida à população poderão baixar e, simultaneamente, serem feitos os investimentos necessários para renovar as infraestruturas.
De facto, a população de Mafra foi muito prejudicada por esta política de privatizações, em especial por ter que pagar, ao concessionário, preços exorbitantes muito acima do que seria razoável e dos da generalidade dos municípios.
A análise jurídica e económica apresentada
Apoiado nos considerandos da proposta de resgate, faço os seguintes comentários:
• O Município de Mafra celebrou, em 15 de Dezembro de 1994, com a empresa Compagnie Générale des Eaux, S.A. um contrato de concessão da exploração e gestão do Sistema de Captação, Tratamento e Distribuição de Água e do Sistema de Recolha, Tratamento e Rejeição dos Efluentes do Concelho de Mafra.
• Nos termos da cláusula 2.8.1 desse Contrato de Concessão, o Município «poderá, por justificado interesse público e decorrido um quinto do prazo da concessão, resgatar a mesma, mediante aviso prévio à concessionária com, pelo menos, um ano de antecedência»Na presente data já decorreu mais de um quinto do prazo da concessão, a qual, nos termos do caderno de encargos do contrato de concessão, é de 25 anos.
• Feita a análise da actual e futura situação da prestação dos serviços públicos essenciais de abastecimento de água e de recolha de águas residuais, «entende-se estarem justificadas razões de interesse público que não apenas permitem mas verdadeiramente obrigam o Município de Mafra a resgatar da concessão», conforme se explicita no documento apresentado.
Vale a pena lutar
«Em primeiro lugar, tanto os serviços municipais quanto o próprio executivo camarário têm vindo a acompanhar com preocupação a evolução das condições financeiras associadas à prestação do serviço público de abastecimento de água no Concelho, nos últimos anos, sendo que a execução do contrato de concessão tem sido financeiramente onerosa para os utentes do concelho de Mafra, quando comparado com os utentes de outros municípios». Na realidade esta preocupação tem sido motivo para muitas críticas e protestos das populações, dos eleitos nos seus órgãos representativos e dos partidos e coligações que em Mafra intervêm. Diga-se em abono da verdade que durante estes 22 anos o partido maioritário, o PSD, teve a preocupação de abafar, tanto quanto lhe foi possível, estes protestos.
Diz-se e confirma-se que vale a pena lutar. Até a água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. A aproximação das eleições deste ano poderá ter tido alguma influência na cedência que o partido que governa teve que fazer a ponto de tomar a iniciativa de reverter a sua posição revertendo a privatização. No entanto a razão apontada, que foi a gota de água que fez transbordar o copo, é a de que «Não obstante os tarifários cobrados vem agora a concessionária alegar que a Concessão terá vindo a ter um desempenho financeiro global inferior ao que terá sido contratualizado entre as Partes» o que motivou a concessionária a apresentar um «pedido de reposição de equilíbrio económico e financeiro».
A Alternativa existe!
Nos «considerandos» que justificam a proposta de resgate estão sintetizadas conclusões do estudo financeiro realizado e que mostram que o serviço feito pelo município poderá ter resultados económicos muito mais favoráveis para o município e para as populações. Mostra o estudo que «Tendo em conta a evolução recente dos consumos, prevê-se, até ao final da concessão, um desvio constante e crescente, com cada vez maior impacto quer para os munícipes quer para o Município, o que redundaria no constante acionamento do mecanismo de pedido de reequilíbrio económico-financeiro». De acordo com o apurado no estudo o valor resultante desse desvio situa-se já (final de 2016) em 754.839 euros e situar-se-á, no final da concessão, em 2020, em 989.693 euros.
Para além disso, há também que considerar o valor que, de acordo com o caderno de encargos, resulta da alteração significativa das normas legais que conduziu à exigência de alteração do serviço, que a concessionária alega representar 1.841.352 euros, estimando-se, partindo do valor reclamado, que no final da concessão, em 2020, poderá cifrar-se em 2.833.584 euros.
O abuso privado
Significativa é a conclusão de que apesar dos valores de preços praticados, que sempre considerámos exorbitantes e que são os mais elevados da área metropolitana e dos mais altos do País, «Para suportar os valores resultantes do pedido de reequilíbrio financeiro formulado pela concessionária, no que diz respeito ao abastecimento de água, (cerca de 2,6 milhões de euros) até à data, seria necessário um aumento de tarifa de 3%» no que concerne à parcela do valor de água. Isto aplicado até ao final da concessão (2020), portanto um aumento de tarifa médio de pelo menos de 3% ano, se outros aumentos não viessem a acontecer.
Público é melhor que privado
Na análise feita aos custos da exploração e gestão do sistema, verificou-se que se o serviço for feito pelo Município, e não por uma entidade privada, é possível o objetivo de baixar a tarifa, em 5%, de forma a ir ao encontro da média nacional das tarifas de água. Conclui o estudo que se o serviço for feito pelo município, «Pese embora o abaixamento da tarifa, verifica-se que o excedente bruto de exploração, no que diz respeito à exploração e gestão do sistema municipal de abastecimento de água, é de cerca de 2,3 milhões de euros por ano, a preços constantes de 2014, sendo de assinalar que o custo decorrente do financiamento a contrair para suporte da operação (aproximadamente de l,5% spread + Euribor a 6 meses), é 100.000 euros por ano».
Verifica-se, portanto, que este «lucro» (excedente bruto de exploração) permite não só a redução dos preços da água como também fazer os investimentos necessários na renovação da rede, assim como a recuperação integral, a médio prazo, do investimento realizado.
Por isso o estudo e a fundamentação da reversão da concessão, «conduzem à conclusão de que a prossecução do interesse público é melhor garantida se for o Município a assumir a prestação doserviço público, comparativamente à execução do contrato de concessão».
«Em concreto, a premissa financeira revelada é a de que a execução do contrato de concessão levará a um contínuo aumento substancial dos tarifários a ser cobrados aos utentes até ao ano de 2020…» e finalmente conclui-se que «Os factos acabados de enunciar conduzem à conclusão de que existe um justificado interesse público em o Município ser o mais brevemente possível a entidade gestora dos serviços e prestadora dos mesmos aos utentes, antecipando o termo natural do Contrato de Concessão fixado para 2020, comparativamente à manutenção da execução do Contrato de Concessão pela concessionária até essa data. Esse interesse público é imposto pelas obrigações de boa administração e de eficiência».
Análise jurídica
A acompanhar a análise económica e financeira vem a fundamentação jurídica de que, da sua síntese, retiro os comentários que faço a seguir.
O interesse público é um conceito jurídico indeterminado, e que a administração tem por dever concretizar «com observância dos princípios que enformam a atividade administrativa, designadamente o da legalidade, da justiça, da igualdade e da proporcionalidade». Acrescenta-se que «O que é de interesse público em rigor, é o que constitui uma finalidade normativamente estabelecida, justificativa da realização de uma conduta administrativa. A prossecução do interesse público no exercício da função administrativa está orientado para os seus objetivos, deve prosseguir os interesses qualificados como públicos, direta ou indiretamente. O princípio da boa administração, do mérito ou da eficiência, previsto na alínea c) do artigo 81.° da Constituição da República Portuguesa para o sector público empresarial e alargado pelo artigo 5.° do Código do Procedimento Administrativo toda atividade da administração pública («A Administração Pública deve pautar-se por critérios de eficiência, economicidade e celeridade»), é uma finalidade normativamente estabelecida e conexa com o princípio da prossecução do interesse público».
Primeiro o interesse público
Mostra-se assim que o dever de boa administração, «deriva o princípio da eficiência, um princípio de cariz dinâmico que, entrando em inter-relação com os outros princípios referidos, postula, esclarece e permite potenciar ao máximo a prossecução do interesse público», conforme está fixado na Constituição da República Portuguesa, quer no artigo 81.º quer no artigo 267.°, bem como na legislação que obriga a administração pública e as autarquias.
Conclui a análise que, também do ponto de vista jurídico, também «A prossecução do interesse público obriga, por isso, o Município a exercer o resgate da concessão, prevista na cláusula 2.8 do caderno de encargos do respetivo contrato» e ainda que «O resgate da concessão é, pois, condição sine qua non para a implementação do novo modelo, que irá trazer menor ónus financeiro para o Município e um menor custo de utilização para o utente».
Que modelos de gestão?
Ainda que não seja para já objectivo deste escrito analisar outros modelos de gestão dos serviços de distribuição e exploração da água, aproveito o que foi discutido na Câmara de Mafra e consta dos considerandos da proposta apresentada e aprovada, para referir que «Segundo o Decreto-Lei n.° 194/2009, de 20 de Agosto, o Município de Mafra, enquanto entidade titular dos serviços de abastecimento e de saneamento, pode adotar um outro modelo de gestão para os mesmos sem ser o modelo de concessão» como por exemplo os referidos na lei citada sejam «modelo de gestão direta ou o modelo de gestão delegada». Em qualquer dos casos essa gestão deverá ser diretamente acompanhada pelos legítimos representantes da população, os eleitos nas autarquias. Só assim, face ao sistema jurídico e administrativo actual, as populações poderão ver melhor defendidos os seus interesses e julgar os responsáveis pelo seu incumprimento. Aliás foi esta fuga às responsabilidades de muitos eleitos nas autarquias que motivou a privatização de serviços, que ao passarem para empresas privadas deixaram de ser fiscalizados pelas populações e muitos dos seus representantes se afastaram dos problemas.
A defesa dos interesses das populações acima de tudo
A escolha do modelo a adoptar terá que ter em conta a melhor defesa dos interesses das populações, a sua possibilidade de informação e fiscalização, directa ou indirecta, e o disposto na Lei n.° 50/2012, de 31 Agosto, sobre a constituição de serviços municipalizados ou de empresas locais, escolha essa que, como dito, tem não só componentes técnicas, jurídicas e administrativas como também as políticas que melhor permitam a defesa dos interesses das populações. E estes passam pela sua possibilidade e incentivo de participação.
Eduardo Baptista
(vereador da Câmara Municipal de Mafra)